quarta-feira, 3 de outubro de 2007

Roubos verbais

Estava lendo o sermão do bom ladrão de Antonio vieira, quando me deparei com uma pérola sobre a ladroagem dentro dos governos. Roubam em todos os tempos verbais, são bons professores na arte de conjugar a safadeza. Acho que esta arte não foi esquecida por nossos políticos atuais!

"Tanto que lá chegam, começam a furtar pelo modo indicativo, porque a primeira informação que pedem aos práticos é que lhes apontem e mostrem os caminhos por onde podem abarcar tudo. Furtam pelo modo imperativo, porque, como têm o mero e misto império, todo ele aplicam despoticamente às execuções da rapina. Furtam pelo modo mandativo, porque aceitam quanto lhes mandam, e, para que mandem todos, os que não mandam não são aceitos. Furtam pelo modo optativo, porque desejam quanto lhes parece bem e, gabando as coisas desejadas aos donos delas, por cortesia, sem vontade, as fazem suas. Furtam pelo modo conjuntivo, porque ajuntam o seu pouco cabedal com o daqueles que manejam muito, e basta só que ajuntem a sua graça, para serem quando menos meeiros na ganância. Furtam pelo modo potencial, porque, sem pretexto nem cerimônia, usam de potência. Furtam pelo modo permissivo, porque permitem que outros furtem, e estes compram as permissões. Furtam pelo modo infinitivo, porque não tem o fim o furtar com o fim do governo, e sempre lá deixam raízes em que se vão continuando os furtos. Estes mesmos modos conjugam por todas as pessoas, porque a primeira pessoa do verbo é a sua, as segundas os seus criados, e as terceiras quantas para isso têm indústria e consciência. Furtam juntamente por todos os tempos, porque do presente — que é o seu tempo — colhem quanto dá de si o triênio; e para incluírem no presente o pretérito e futuro, do pretérito desenterram crimes, de que vendem os perdões, e dívidas esquecidas, de que se pagam inteiramente, e do futuro empenham as rendas e antecipam os contratos, com que tudo o caído e não caído lhes vem a cair nas mãos. Finalmente, nos mesmos tempos, não lhes escapam os imperfeitos, perfeitos, plus quam perfeitos, e quaisquer outros, porque furtam, furtaram, furtavam, furtariam e haveriam de furtar mais, se mais houvesse. Em suma, que o resumo de toda esta rapante conjugação vem a ser o supino do mesmo verbo: a furtar para furtar. E quando eles têm conjugado assim toda a voz ativa, e as miseráveis províncias suportado toda a passiva, eles, como se tiveram feito grandes serviços, tornam carregados de despojos e ricos, e elas ficam roubadas e consumidas."

terça-feira, 19 de junho de 2007

Liberdade

Ai que prazer
não cumprir um dever.
Ter um livro para ler
e não o fazer!
Ler é maçada,
estudar é nada.
O sol doira sem literatura.
O rio corre bem ou mal,
sem edição original.
E a brisa, essa, de tão naturalmente matinal
como tem tempo, não tem pressa...

Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.

Quanto melhor é quando há bruma.
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!

Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol que peca
Só quando, em vez de criar, seca.

E mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças,
Nem consta que tivesse biblioteca...

Fernando Pessoa

domingo, 17 de junho de 2007

Medo. Eu tenho!


Medo. Eu tenho de viver
Medo. Eu tenho de morrer
Medo. Eu tenho de sair
Medo. Eu tenho de ficar
Medo, das coisas mais efêmeras
Medo, das mais obscuras
Medo, de dizer que tenho medo
Medo, que descubram como sou
Medo, do medo que me amendronta
Medo. Eu tenho!

sexta-feira, 15 de junho de 2007

Percepção

Percebo que não sou mais o mesmo
Não penso mais como menino
O que não quero é ficar a esmo
Na sombra de um eufemismo

Ouço coisas que não ouvia antes
Fatos e realidades desconhecidas
Não sei, se antes não eram importantes
Ou se a mim é que estavam escondidas

Vejo ao meu redor só tristeza
As pessoas tratadas como nada
Sinto que não passam de presa
No galope destruidor da manada

Mundo de complexidades loucas
Onde o grande problema é o homem
Onde as conquistas são bem poucas
Para aqueles que não moram, se escondem

terça-feira, 12 de junho de 2007

Um outro eu


Já faz algum tempo, percebi que as pessoas me olham e vêem um outro que não sou. Não sei se sou eu próprio o criador desta outra face, mas de fato, me dizem coisas que eu mesmo não penso de mim. Confesso. Como todo ser humano faço coisas para receber aprovação. Quem não faz?
Mas estou preso a este outro eu idealizado por mim mesmo e com o aval dos demais. Lembro de Rubem Alves falando: “nomes são gaiolas que prendem pássaros que deveriam voar”. Estou me sentindo preso! Minhas idéias são totalmente obtusas ao círculo transitado por mim. Não acredito nos ritos, nos gritos, nas determinações em nome de Deus para o sucesso. Outro dia fui recomendado por alguém a não falar sobre certos assuntos, porque esta era a postura institucional. Fiquei calado, preso neste outro eu, preocupado com minha reputação. Concordei com tudo, apesar de dentro de mim achar a maior idiotice tudo o que ouvi. Quando estou sozinho, migro como o pequeno príncipe por vários mundos. Alguns muito diferentes aos meus e sonho com como uma realidade diferente, transcendo minha mediocridade, questiono as determinações de Deus e idealizo um mundo melhor. Mas quando entro neste outro mundo - o mundo do “outro” - penso estar possesso de demônios, pois não é essa umas das funções dele, a de despersonalizar? Assim como aquele homem cheio de força, o qual ninguém podia resistir, mas que não tinha vontade própria? Sinto-me possuído de uma força abalizadora que me da poder de atuar e falar, me dá pão e circo e por momentos me recruta para o show. Contudo, neste show não posso criar meu ator. Sou um títere, preso as cordas de um manipulador superior. Estou a ponto de romper com este outro eu, não o do espelho, companheiro eterno na terra, mas com este que me deixei possuir às vezes sem notar, e hoje me encarcera em sepulcros de Deus. Peço a Deus, o libertador, e aos meus amigos que me ajudem somente a ser eu mesmo, livre para voar.